quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Voando Alto

Todo ano era a mesma coisa e todo ano era bom demais. Meus pais nos levavam para passar o ano novo na praia. Eles voltavam para trabalhar em Janeiro e eu ficava com as minhas avós. Em Fevereiro eles trocavam, as avós partiam e os pais voltavam. Isso me dava pelo menos dois meses de férias. E o melhor, meus primos também veraneavam na mesma praia, aí era aquela festa. Mas naquele verão trazia novidades. Meu primo apareceu com uma pandorga feita pelo tio dele.

É claro que eu queria uma também, todo o menino quer uma pandorga, e lá fui eu incomodar o meu pai. Verdade seja dita, o velho não tinha lá muitos talentos manuais e, depois de quase um dia, me entregou um quadrado pequeno, coberto com plástico, que, apesar dos fortes ventos do litoral gaúcho, teimava em não sair do chão. Fiquei arrasado, motivo de chacota pelo resto da turma com a minha pandorga que ganhou o singelo apelido de papa-terra.

Porém não me deixei abalar. No outro dia começaria o meu aprendizado como construtor de pandorgas. Depois da seleção dos materiais, uma boa taquara, um canivete, fio de náilon (que dava um trabalho danado para amarrar mas eu não tinha barbante) e sacos de lixo. É importante explicar que o litoral gaúcho, com ventos que em média ultrapassam os 40Km/h   não comportam pandorgas feitas de papel encerado e outras frescuras. 

Dois dias depois nascia a Voyager, feia, verdade, mas totalmente funcional. O saco de lixo azul lembrava a bandeira do Grêmio e o rabo cinzento, feito com os restos de panos de chão da minha avó, completava a aeronave. Mas a bichinha voava, como voava. Emocionado com os resultados logo, logo, nascia a Discovery, essa maior, com rabo duplo. Tamanha a sua robustêz chegou a ser requisitada pelos pescadores da rua para colocar o espinhel em alto-mar. E eu não iria parar por aí, meu projeto definitivo foi a Enterprise, essa uma pandorga caixão, o Rolls-Royce das pipas. Mas exagerei nas especificações pois quando ganhou os céus quase levou o meu irmão menor junto com ela.

Ainda lembro da minha frustração com a papa-terra, porém não posso imaginar nada melhor do que a falha em meu pai na sua construção. Tivesse a papa-terra voado eu jamais aprenderia a fina arte da construção de pipas, e a Enterprise nunca teria existido. Meu pequeno está quase fazendo um ano, mas num instante ele terá a idade para pedir uma pandorga. E meu presente para ele será o mesmo que meu pai me deu, a santa ignorância paterna.

[]s
Jack DelaVega