domingo, 10 de abril de 2011

E.A. - Entusiastas Anônimos



Andava com pressa pela calçada. Local emputecidamente lotado de pessoas incapazes de aplicar o mínimo esforço necessário para mover seus corpos no ângulo que os permitam seguir seus caminhos sem se confrontarem brutalmente com outros seres. Isso sem contar mendigos, pregadores da palavra de Deus, e mais perigosamente, os vendedores-de-sei-lá-o-que que te abordam, quase como uma ameaça, tentando lhe oferecer uma coisa ou de origem duvidosa ou inútil. Nesse dia fui pego por um deles.

- Olá senhora, será que eu poderia ter um minuto da sua atenção?

Andava ao meu lado enquanto falava.

- Na verdade agora não. Estou com um pouco de pressa.
- Vai ser muito rápido, eu prometo senhora.

Desta vez não estava mais ao meu lado, mas sim na minha frente e, consequentemente, impedindo meu deslocamento.

- Ok, diga.
- Estou aqui para falar sobre o E.A., a senhora já o conhece?
- Certamente não. Continuo com pressa.
- Entusiastas Anônimos. Nossa sede fica no segundo andar deste prédio. Gostaria de convidá-la para conhecê-lo. Hoje começa mais um grupo novo.
- E por que dentre tantas pessoas nessa bendita calçada, você foi achar que justamente eu deveria conhecer um grupo desses?
- A senhora está vestindo uma roupa social, mais precisamente terno e calça preta em um calor de trinta graus ao meio dia. Está também de salto alto andando rapidamente por essa calçada esburacada, equilibrando uma pilha de papéis em um braço e sua bolsa nada pequena no outro. Ainda assim demonstrava uma expressão tímida de contentamento e determinação. Você tem todas as características de um entusiasta anônimo.

Fiquei muda por um minuto.

- Quanto tempo leva caso me interessasse em assistir essa reuniãozinha ai?
- Uns quarenta minutos no máximo.
- Ok, vai. Leve-me até lá.

Ao entrar, percebi que a reunião já havia começado e uma senhora que me parecia ser a líder fazia a abertura para os outros participantes, todos sentados em roda. Discretamente fui me acomodando em uma das cadeiras.

- Sejam bem vindos ao Clube dos Entusiastas Anônimos. Agora vocês fazem parte de um grupo vitorioso de pessoas que aceitaram se mostrar aos seus semelhantes, para juntos superarmos essa barreira imposta pela sociedade em excluir aqueles que são verdadeiramente satisfeitos profissionalmente, e cujo trabalho nem sempre é bem visto pela maioria. Meu nome é Fátima, sou Chefe de Jornal Mural. Não faço as matérias, mas tenho muito prazer em organizá-las nos vinte murais espalhados pela empresa. Agora gostaria que cada um de vocês fizesse o mesmo. Apresentem-se e não sintam medo de expressar seus profundos sentimentos por suas funções. Quem começa?

- Eu amo mexer em planilhas de Excel! Formatar, corrigir, filtrar. Sou Head de Listas e meu nome é Alfredo.
- Sou Ana. Finalmente consegui o emprego dos meus sonhos. Sou operadora em uma empresa de Contact Center! Sempre achei o máximo usar aqueles headsets.

Assim todos se apresentaram até que chegou minha vez. Não sabia bem o que falar até que decidi deixar as palavras surgirem naturalmente.

- Olá, meu nome é Maria. Sou vendedora. Fixo baixo, comissão razoável. Trabalho pelo desafio e gosto da idéia de poder me superar a cada venda conquistada. Sempre compartilhava minhas vitórias porque acho que é pra isso que elas servem. Mas ai percebi que o pessoal lá da empresa caçoava de mim, então passei a comemorar sozinha, às vezes ia até o banheiro só pra poder dar um sorriso mais largo sem chamar atenção. Acho que é isso.

- Ok, muito obrigada a todos vocês pelos depoimentos. Disse Fátima.
- Acabamos nos estendendo e por isso acredito que iniciaremos as discussões da primeira pauta só na semana que vem. Não faltem. Como eu disse, todos aqui são vitoriosos por já terem dado o primeiro passo. Sonho com o dia em que este clube deixará de ser anônimo e todas as pessoas entenderão que satisfação profissional é muito mais do que altos salários, cargos com nomes bonitos e grandes posições hierárquicas, mas até lá precisaremos trabalhar muito. Ah, estudem sobre a Pirâmide de Maslow. É sobre ela que falaremos na semana que vem.

Sai de lá atônita. Ansiosa e curiosa para a próxima semana. Desci as escadas com um sorriso que não cabia em mim. Quase na calçada e distraída, esbarrei com um homem que ia subir. Olhou com cara feia e ainda se sentiu ofendido com minha alegria. Lembrei então que tinha voltado à vida real. Fechei a cara e continuei com a minha pressa.