terça-feira, 5 de outubro de 2010

O Motivo

Debruçado no teclado, Máximus olhava para o cursor piscando na sua janela do Microsoft Word. A única coisa que tinha escrito até então era "Carta de Demissão". Só faltava todo resto...

"Venho por meio desta pedir meu desligamento da empresa Meridiano S/A a partir de segunda-feira, dia 11 de outubro de 2010."

Depois de 15 anos naquela empresa, sabia que tinha chegado no seu limite. Gostava do que fazia - adorava a parte técnica e construir coisas novas, mas não suportava a politicagem que tinha que praticar diariamente para se manter no cargo de gerente de produção. Por um bom tempo o balanço tinha sido positivo - mais coisas boas do que ruins - mas agora a balança estava completamente deitada para o lado ruim, sinal claro que o seu tempo naquela empresa tinha terminado.

Sabia que não precisava colocar os motivos em uma carta de demissão formal, mas queria colocá-los mesmo assim para que ficasse claro porque estava saindo. O problema é que nem para ele estavam claras as razões por trás de tudo.

"A principal razão do meu desligamento é o número de horas-extras e de trabalho em fins-de-semana que exigem que meu time cumpra para lançar o novo trator R3D. A empresa tornou-se uma máquina de produção sem pensar nas pessoas e..."

- Não, isso não. Essa foi só a gota d'água - pensou em voz alta.

Apagou o último parágrafo e começou novamente:

"A principal razão do meu desligamento é não conseguir mais me focar em coisas importantes para a empresa, pois tenho que ficar preocupado com a politicagem diária de meu diretor e de meus pares, para que nem eu nem meu time sejam prejudicados..."

- Hmmm, não, não. Esse não é o motivo principal não, concluiu Máximus novamente.

Mas então o que estaria fazendo Máximus desistir da empresa onde havia trabalhado nos últimos 5 mil dias mesmo sem ter nenhum emprego em vista? A resposta não era trivial - e nada fácil de se encontrar. Mas um clique, daqueles que se tem poucas vezes na vida, lhe fez extrair do fundo do seu coração as verdadeiras razões do seu desligamento.

"A principal razão do meu desligamento é que quero olhar para as coisas e me satisfazer com a simplicidade delas, sem precisar nenhuma justificativa para isso. Quero me demitir da competição forçada, dessa politicagem que enxerga o pior das pessoas e não o quão valiosas são - o quanto elas também querem a mesma coisa que todo mundo - ser feliz.

Quero me desligar da abundância de problemas, das atitudes mesquinhas, muitas vezes vindas de mim mesmo, para justificar ações que nem acredito mais. Sim, quero viver aquilo que acredito e acreditar que posso ser feliz com isso.

Quero sentir o simples prazer de tomar banho de chuva sem me preocupar com o amanhã. Quero andar descalço com meu filho no calçadão em plena quarta-feira de tarde. Quero ver o pôr-do-sol três vezes por semana com minha esposa. Quero acompanhar de perto a velhice de meus pais e ter a chance de falar-lhes palavras de carinho antes de ser tarde demais. Quero sentir a brisa gelada de uma sexta-feira de inverno enquanto ando sem rumo por aí.

Quero me demitir dos problema diários que não são meus; das dores que causei em meus colegas; da falta de atenção com o meu filho de 1 ano e meio que precisa de um pai mais do que qualquer coisa nesse mundo. Quero me demitir da falsidade corporativa, do stress injustificado e da falta de compreensão de meus chefes.

Quero levar meu cachorro para passear todos os dias de manhã. Quero terminar de aprender Pour Elise no piano antes que fique senil. Quero aproveitar a vida antes que morra repentinamente.

Infelizmente, contei meus dias e percebi que já passei da metade dela. Tenho mais passado do que terei de futuro. Essa assustadora constatação me atormenta e me faz ver o quão fútil e mesquinha são diversas coisas que faço nessa empresa. Eu simplesmente não posso mais. Felizmente, uma vida não se mede com o metro dos anos, mas sim com o da intensidade. E isso, ainda posso recuperar.

Me demito do meu passado para entrar em um presente e futuro regozijantes, no qual possa me sentir tão forte quanto o homem que fui aos vinte anos e tão alegre quanto o moleque que fui aos cinco.

Você provavelmente está pensando que fiquei louco, não é!?

Não se preocupe, me demito também de julgamentos superficiais baseados no termômetro das massas, que considera tudo o que ocorre no dia-a-dia normal e por isso mesmo torna "normal" um assassinato de um adolescente a busca de crack só porque é um fato corriqueiro.

Pensando bem, se me considerou louco e anormal após ler esta carta de demissão, apenas reforçou que minha escolha foi acertada."

Dr. Zambol
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