quarta-feira, 27 de maio de 2009

Dona Erci

Toda manhã, nos últimos quarenta anos, a dona Erci tem a mesma rotina. Acorda cedo, antes das sete, e vai abrir o bar. Na verdade o boteco, que tem cerveja e cachaça, além das mesas de bilhar. Durante vários anos ela dividiu essa tarefa com o filho mas, mesmo depois que ele faleceu, ela persiste com a rotina. E todo o dia ela fica lá até as dez, onze horas da noite, cuidando do bar sozinha. Limpa como pode, atende, recebe os fornecedores e dá comida para o Vinagre, que já é o terceiro cachorro com o mesmo nome e sobrevive à base de polenta fumegante misturada com restos de comida.

Porém, na semana passada foi diferente. O único freguês àquela hora pediu um cigarro. Dona Erci se virou para pegar e ao retornar foi recebida com três tacadas na cabeça. Caiu ao chão enquanto o sujeito a revistava em busca do dinheiro.

Ela sobreviveu a dois maridos. Com primeiro, um italiano que a enrolou antes do casamento dizendo que era dono de terras em Porto Alegre, ficou casada muito tempo. Foi com ele que  teve seu único filho. Mas o coração do italiano apesar de bom era fraco. Ele faleceu de um ataque cardíaco, depois de um prato de costelas de porco regadas a muito vinho. O segundo marido, dizem, tentou se aproveitar dela. Casamento por interesse. Mas foi ela quem acabou ficando com a pensão, depois da morte prematura do marido por câncer. Não era uma pessoa de muitos sorrisos mas, podia-se dizer, que a vida a endureceu. E quando alguém reclamava do seu estilo seco, a resposta era dada no velho estilo gaúcho:
- Sou assim porque na minha terra Bugio é Delegado!

Fiquei assustado quando encontrei a minha avó com a cabeça toda roxa. Foram três tacadas na cabeça de uma senhora de oitenta e dois anos. Ah se eu pegasse o desgraçado...
- É o tal do crack.
Ela diz resignada. Ele frequentava o bar já a dois meses, era até o um bom freguês.
- Mas o melhor tu não sabe, quando que eu caí no chão fingi que estava desmaiada. Ele  começou a me revistar procurando dinheiro, mas não encontrou nada. Tava aqui ó, embaixo do braço. Ele foi embora levando só vinte reais que tinha no caixa. Eh, eh, eh, se deu mal o safado.

O bar garantiu o sustento da minha família por muito tempo, pagou minha faculdade e a do meu irmão. E mesmo quando meu pai já estava doente ela ficava lá, segurando as pontas e mandando dinheiro para o tratamento dele. É impressionante a força da velha. Quando eu pergunto por que ela não deixa o bar e vai descansar, afinal, ela não precisa mais disso, a resposta é enfática:
- E fazer o que? Isso aqui a minha vida.

O bar ficou fechado por dois dias, tempo para ela se recuperar, acertar os curativos e voltar ao posto. Parar de trabalhar? Só mesmo para esperar a morte chegar.

[]s
Jack DelaVega