quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Morte Pede Passagem

Deitado, imóvel, via aquelas dezenas de pessoas à sua volta chorando. Não sabia que morrer era assim. Não sabia que ainda veria as pessoas depois "do acontecido". Ainda mais com a visão da sua própria perspectiva, como se os seus olhos ainda funcionassem.

"Cadê aquelas visões de cima, onde se vê todo mundo, inclusive o nosso próprio corpo, que os mortos sempre vêem nos filmes?" pensou. "Que porcaria de visão é essa?". A visão que tinha de dentro do caixão realmente era muito limitada pelas laterais altas do caixão onde se encontrava. Muitas das pessoas que estavam sentadas estavam completamente tapadas pela maldita lateral do caixão.

"Quem será que comprou esse caixão com esse veludo cor de vinho dentro? Que coisa mais cafona!", pensou irritado Marcos Schnizel, o diretor de produção de uma grande empresa de construção de aviões.

Sua morte tinha sido rápida e praticamente indolor. Um grande aneurisma havia se rompido após o churrasco de domingo. Sentiu uma forte dor de cabeça, mas logo a visão ficou turva e a próxima coisa que se lembra era "abrir" os olhos já dentro daquele caixão.

Marcos era workaholic. Tinha conseguido reduzir em 75% as falhas na produção, mesmo com um aumento no volume de aviões montados na ordem dos 40% no último ano. Era reconhecido em toda a empresa como uma pessoa brilhante, cheio de ideias e sempre muito motivado.

Foi quando viu um dos seus gerentes sêniors se aproximar dele. Olhou para ele com os olhos marejados e disse como se soubesse que Marcos estava lá para ouvir:

- Você foi um grande chefe Marcos. Não vou esquecer nunca de ti. Mais do que um mentor, você me mostrou o que é ser um bom líder. Vai em paz amigão! Você foi o melhor chefe que tive!

"Paulo, Paulo. Eu tô te ouvindo cara. Tu também é um excelente profissional! Tu vai se dar muito bem. Espero que tu me substitua na posição de diretor. Ah, e vê se finaliza aquele processo de ..."

Mas Paulo havia ido embora já. Marcos se deu conta que podia ver e ouvir, mas não era escutado. Ninguém sabia que ele estava ali, presenciando tudo como se ainda estivesse vivinho da silva.

Então um outro funcionário seu se aproxima:

- Marcos, a gente trabalhou dez anos juntos. Tu me contratou estagiário e me promoveu até a gerência. Devo tudo o que sou profissionalmente a ti. Espero que tenha sido indolor e que vá para o céu direto. Tu merece...

Mesmo morto, Marcos sentia uma emoção muito forte ouvindo aquilo tudo. Não podia terminar sua vida melhor. Bom, na verdade sua vida já havia terminado, mas aquele fechamento e aquelas confissões são coisas que só morto se escuta mesmo.

E não parou por aí. Marcos aquela noite contou 22 pessoas que trabalhavam direta ou indiretamente com ele que passaram pelo seu caixão, olharam para ele, e comentaram qualidades que nem sabia que tinha e demonstraram sentimentos por ele que nunca havia percebido. Algumas daquelas pessoas ele até tinha certeza que não gostavam dele. A morte lhe provou o contrário.

Realmente, o velório de Marcos estava indo de vento em popa. Marcos estava emocionado. Não chorava porque não tinha mais lágrimas, mas estava muito emocionado e convicto que tinha acertado na vida.

- Ai meu amor - falou sua esposa, com a voz embargada - porque você ficou tão distante de mim e do seu filho nos últimos 5 anos? Não sei se te conheço bem mais. Não sei quem você foi bem nesses últimos anos. Era só empresa. Só sabia falar e pensar nisso. Mesmo na janta estava sempre com o seu blackberry ligado e respondendo e-mails. Por que meu amor?

"Lúcia, eu fiz isso por nós, pela educ..."

- Eu não precisava de metade do nosso dinheiro. Precisava era de ti. Precisava era de um pai presente na criação do nosso filho, que tanto sente a tua falta. Mas sei que tu não fez por mal. Vai em paz meu amor.

Marcos estava abismado. Dois minutos atrás era o morto mais feliz do mundo. Agora queria morrer....Bem, queria sair daquela situação e desfazer tudo aquilo. Queria viver novamente. Foi quando então viu seu filho de 8 anos.

- Pai, te amo. Pena que a gente não jogou aquela partida de futebol que a gente ficou de fazer no verão passado. E nem brincou novamente de "túnel de vento" que eu tanto gostava. Tu tinha prometido pai. Não quero que tu vai embora. Não quero, não quero...

Aos berros, seu filho foi acolhido pela avó, que levou-o para fora para acalmá-lo.

Marcos estava atordoado. O que tinha feito errado? Tentava ver sua esposa e filho. Queria ver como estavam. Mas as bordas...as bordas do caixão o cegavam. Não conseguia vê-los. Imerso em pensamento do que tinha feito errado, viu Paulo chegar ao seu lado novamente e começar a fechar a tampa do caixão.

"Não, não. Espera. Quero ver meu filho ainda! Onde ele está?"


CLICK! Escuridão total.

Foi o último som e a última coisa que Marcos viu.

Pobre Marcos. Um grande diretor. Um pai e um marido ausente.

Dr. Zambol
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